quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Geraldo Assoviador - Luis Antonio Simas

video sobre a morte de Geraldo: 




Emocionante o texto e o video 
- informação do texto enviada por Salvador Falcao.
"Deixo aqui registrado o meu muito obrigado pelas palavras e a saudade eterna pela craque... meu nome é Lincoln Dias Alves Junior, Fiho de Lincoln dias Alves, irmão de Gerâ e com muito orgulho sou sobrinho dessa fera! Hoje com certeza bate bola em um time com Garrincha, Denner e muitos outros craques no andar de cima...


- vamos ao texto do blog do Luis: 


A próxima quinta feira, dia 26 de agosto, marca o aniversário de encantamento de um passarinho cantador dos mais raros da fauna brasileira - o craque Geraldo Cleofas Dias Alves, o Geraldo Assoviador. Certa vez escrevi, no meu antigo blog, um texto louvando a memória de Geraldo. O  momento é de homenagear de novo Geraldo, seguindo a lição dos mais velhos. A única morte efetiva, incontornável, maldita, é o esquecimento. A vitória da vida é a lembrança. Geraldo é Egungun no meu terreiro brasileiro; ele baila com as vestes sagradas dos ancestrais. Aqui, pelo menos, ele não será esquecido. Contar dos ancestrais é dar continuidade à cultura e manter as tradições da aldeia.

Peço a licença na regra dos preceitos e  louvo no texto abaixo um ancestral do meu país. Agô Baba, Mojubá. Agô Babá, Mojubá. Agô Babá, Mojubá.  O nome é Geraldo Assoviador, e que ele um dia seja lembrado pelos netos dos  nossos netos como faço agora.

Uma das coisas que mais me fascinam no Brasil é a impressionante capacidade que o povo brasileiro teve de se apropriar do futebol europeu - o tal do violento esporte bretão - e lidar com o mesmo não como simulacro, mas como reinvenção. Esse talvez seja o traço distintivo mais importante de um certo modo de ser brasileiro; a capacidade de apropriação de complexos culturais estranhos e o poder de os redefinir como elementos originais. Coisas nossas, como disse o menino Noel Rosa.

Não consigo pensar, em suma, o Brasil sem refletir sobre o futebol e a criação de um modo brasileiro de jogar bola completamente diferente do sisudo jogo inventado pelos britânicos. Isso vale para a música, a dança, a culinária, as formas de amar, sofrer, chorar, enterrar os mortos e celebrar a vida. Amamos, dançamos, morremos, choramos, celebramos, comemos e tomamos cachaça, enfim, da mesma forma como gostamos de jogar bola.

Digo isso e penso, imediatamente, na figura maior de um craque que, infelizmente, não tive a oportunidade de ver nos gramados como deveria. Falo de Geraldo Assoviador, meio-campista do Flamengo de meados da década de 1970. Eu era bem menino, doido pela bola, e ouvia impressionado meu avô contar sobre uma mania que Geraldo tinha durante as partidas, a de assoviar enquanto realizava as jogadas mais inusitadas em campo.

Esse hábito de jogar assoviando deu a Geraldo a fama de irresponsável, irreverente, descompromissado, chupa-sangue e outras baboseiras do gênero. Queriam que o neguinho Geraldo, mineiro de Barão de Cocais, se comportasse como um respeitável centro-médio europeu, de cenho franzido e olhar de touro brabo, uma espécie de candidato a meia direita da seleção da Escócia. Mas Geraldo era brasileiro.

Não percebiam, os senhores críticos, que Geraldo jogava bola com a mesma naturalidade com que cruzava uma esquina, comia um tutu com torresmo ou tomava uma abrideira para chamar o apetite. Geraldo jogava como vivia - ou vivia como jogava, sei lá. Já cansei de sonhar com uma cena ( será que ocorreu?) que é a seguinte: durante um clássico no Maracanã, estádio lotado, uma pipa cai no meio do campo; Geraldo captura, com jeito moleque, o papagaio e começa a empiná-lo, enquanto dribla os adversários e assovia em direção ao gol.

Lembro-me, impressionadíssimo, quando numa certa tarde de 1976 recebi a notícia de que Geraldo, o craque que assoviava, tinha acabado de morrer, aos 22 anos de idade, em consequência de uma parada cardíaca sofrida durante uma operação de amígdalas. Quero crer que aquela foi a primeira notícia de morte que recebi, muito menino ainda, na minha vida. Nunca mais esqueci. Meu avô, chorando copiosamente, repetia apenas:

- Cracaço! cracaço! Que pena. Você, que gosta tanto de futebol, não viu esse garoto jogar.

Muito tempo depois - meu avô já tinha ido oló - eu estava num terreiro de candomblé para participar de um xirê em homenagem a meu pai Ogum, o orixá dos metais e da guerra. Eu tocava o lumpi, um dos atabaques sagrados. Durante a festança, com o coro comendo solto,  Exu tomou o corpo de uma yaô para participar da alegria de Ogum, seu dileto irmão. Imediatamente, para se fazer reconhecido na terra, Exu gingou como exímio capoeirista e deu o seu ilá - o som que o orixá emite quando sai do Orum, o país do mistério, e vem ao Ayê, o nosso mundo, para comungar com os homens.

ilá de Exu, meus camaradas, era um assovio longo e afinado, como quem silva para chamar o vento e enfeitiçar o mundo com a precisão do passe.

Quem disse que eu não vi Geraldo em campo?


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